segunda-feira, 1 de agosto de 2016

ANTES DO PENSAMENTO

Parece que existe um pensamento que precede o pensamento. É um pensamento diferente, que ainda não se tornou uma projeção, uma imagem consciente. Por exemplo, quando você imagina o jantar delicioso que vai ter depois do trabalho, quando imagina o encontro com o ser amado, quando imagina o fim de semana, a ida à praia, a cerveja gelada, em suma, o que quer que seja, esse pensamento – já, digamos, secundário – está constituído. Tanto que virou imagem, ideia bem definida e, até, antecipação do prazer futuro. Ou dor perante sua – ainda – não realização.

Mas eu falo de um pensamento anterior a esse. Na verdade, se quisermos ser exatos, não é outro pensamento, e sim o movimento do pensar que, ao final, vai desaguar no pensamento constituído. No entanto, para fins “didáticos” (coloco a expressão entre aspas porque não estou ensinando nada, mas analisando a mim mesmo), digamos que seja um pensamento distinto, anterior àquele já constituído, que é ilustrado por uma imagem ou um “filme” na sua cabeça. É o que vou chamar de pré-pensamento.

O pré-pensamento não tem forma. Ele não é imagem. É um pensamento tão vago e ainda indefinido que se assemelha a uma sensação. Às vezes, quando estamos prestes a dormir e somos acordados, lembramos de algum pensamento muito coerente, vivenciado, por assim dizer, às portas do inconsciente, mas não conseguimos transformá-lo numa memória bem definida. Você já sentiu isso? É como se estivéssemos caindo no sono e nossa mente já tivesse começado a produzir um discurso diferente, com sua coerência peculiar, mas que não passa pela consciência. Se somos acordados, pensamos: “eu estava 'pensando' em algo tão forte, tão verdadeiro… mas o que era mesmo?”.

Estou tentando com esse exemplo captar essa forma de sentir, anterior ao pensamento claro e definido, algo que se posiciona, poderíamos dizer, antes do mergulho no inconsciente, numa linha imaginária que vai do inconsciente ao consciente – e vice-versa.

Um alerta, antes de continuar. O que chamo de pensamento consciente, ou pensamento “claro e definido”, embora esteja constituído de imagens, de sonhos delineados, de expectativas precisas, nem sempre é tão consciente assim. Posso estar com a imagem da saída, mais tarde, com os amigos, na minha cabeça, e ainda assim não perceber que é esta imagem que torna meu dia um tanto torturante. Ela está ali como construção acabada, mas não percebo claramente que é o abismo entre o que faço agora – um trabalho chato – e a não realização dessa imagem, que me faz, simplesmente, estar incomodado ou angustiado.

Ora, se até algo que está razoavelmente claro na minha cabeça não provoca em mim a percepção de que sofro pela frustração do desejo não realizado, imagine o mal que me pode provocar o pré-pensamento, que não tem forma alguma e que é, em razão disso, mais sorrateiro.

Vou dar um exemplo para tornar essa explicação mais simples. Eu desço à piscina do prédio com o intuito definido de relaxar. Enquanto estou lá, num ambiente agradável, tomando sol num clima tropical e verdejante (pois há um jardim), não tenho qualquer imagem definida na minha cabeça do que vou fazer mais tarde, nenhuma programação que pudesse ativar uma expectativa qualquer, que por sua vez geraria o conhecido processo de desejo e de frustração do desejo pela sua não realização.

Apesar disso, há um pré-pensamento presente. Ele, se pudesse ser expresso em palavras, seria algo assim: “e depois?”. Se pudesse ser expresso! Porque ele não é, ele não se apresenta sob qualquer forma que seja – imagem, filme, ideia, reflexão. Ele é pensamento bruto, concreto, quase um “peso” indefinido. "Depois dali, o quê?" Qual a próxima tarefa? O que tenho que fazer logo depois, ao longo do dia ou, até, no momento seguinte? Saio da piscina ou permaneço mais tempo? Pego mais sol, passo protetor ou volto para casa? Alguém me mandou alguma mensagem no Facebook? Responderam-me um e-mail? Deveria estar escrevendo um texto? Que processos me aguardam no trabalho? Vou me estressar?

Eu sei que estou enunciando vários pensamentos bem delineados, mas queria que você entendesse, ou talvez até identificasse isso em você, que esse pensamento é prévio, antecede esses questionamentos, dá-lhes vida, numa imbricação metafísica difícil de descrever. É dele, como fonte, que se impõe, como necessidade, a manifestação de algo para depois, para logo mais, para um futuro muitíssimo próximo. Na concretude desse pensamento disforme reside um mecanismo criador de necessidades, um caos criativo e automatizado. É dele que brota, irresistível, o imperativo de se agir, nem que essa ação, a princípio, seja um mero pensamento mais bem formulado – o pensamento constituído ou secundário.

Se até agora você não se identificou com nada do que eu disse aqui, aconselho que pare de ler. Esqueça esse texto. Nós, decididamente, não estamos compartilhando as mesmas vivências, de modo que o resto lhe parecerá ainda mais estranho. Digo isso para que não perca seu tempo.

Do contrário, continuemos.

Esse pré-pensamento, por sua deformidade ou intangibilidade, pela incapacidade que temos de dizer qual seria sua forma, poderíamos apelidar, como fez Freud, de pulsão. A imagem de uma fonte para mim é perfeita. Há um buraco borbulhante no solo, e dali brota água. Inexplicavelmente. É uma turbulência, um caos de onde nasce a vida, mas no nosso caso, a “vida” que dali provém não é propriamente Vida, mas pensamentos (os secundários). Esse lugar me parece o exato local onde a pulsão transforma-se em pensar. A pulsão poderia se transformar em um bocado de outras coisas, é verdade. Num sujeito como eu, que privilegiou – infelizmente –, ao longo da vida, uma determinada atividade mental / cerebral, a pulsão se torna naturalmente pensamento secundário. E este, associando-se a outros, presentes na memória como informações, dão início ao processo associativo cujo fim desconheço, mas que também se apresenta como automático.

Não creio que seja possível – ou sequer desejável – tentar refrear o pré-pensamento ou a pulsão, como você preferir. Isso seria pura repressão. Botar uma tampa numa panela de pressão e não ficar atento a possíveis aumentos de temperatura e explosões daí decorrentes. Acho que a pulsão, em si, não é de morte ou de vida, como se apresenta na psicanálise. A pulsão é pulsão tout court. A pulsão é vida que viceja, energia borbulhando, inqualificável, sem “maldade” ou “bondade” inerentes. Larva vulcânica saindo do interior da terra, com a capacidade de fertilizar e aquecer - ou provocar catástrofes. É no cerne do pré-pensamento que ocorre uma transformação.

No local exato onde deveria haver vontade é que tudo se dá. A maioria dos seres humanos parece não possuir vontade. Não ter desenvolvido a vontade. E eu admito, por não possuí-la num grau em que creio ser possível possuí-la, não sei muito bem como alcançá-la plenamente. A vontade é, para mim, o maior dos mistérios. Nesse ponto do pré-pensamento, parece haver seres humanos que encaminham a pulsão, que a direcionam. “Olhe, você pode até querer seguir esse percurso cerebral já traçado, que te conduz ao pensamento secundário do teu atual desemprego, que te leva à frustração de não ter dinheiro, que te leva à violência contra os outros justamente por causa dessa frustração, que te leva à destruição pelas drogas ou pelo álcool, que te leva ao enegrecimento do teu espírito e à decadência paulatina do teu ser. Você (pulsão), pode até “querer” isso, mas eu sou a vontade e, por ser a vontade, te digo: você vai cuidar das plantas, varrer a casa, estudar, correr, suar; você vai seguir, não o caminho destrutivo da pulsão, mas o seu percurso construtivo”.

A vontade é esse momento em que se escolhe, não o que fazer no campo da ação, que normalmente já está condicionada a toda a cadeia de pensamentos, mas que encaminhamento dar ao pré-pensamento e à pulsão que subjaz a ele. Liberdade e vontade, nesse sentido, são uma única e mesma coisa para mim. A liberdade só pode estar situada nessa escolha radical de não deixar que suas ações estejam pautadas num encadeamento involuntário de pensamentos gerados lá atrás, na raiz, num campo energético para o qual sua atenção nunca – nunca mesmo – está voltada. Perceba a quantidade absurda de condutas suas que provocam o pensamento: “por que eu fiz isso?”.

Perceba que o “por que eu fiz isso”, impregnado no mais das vezes de doses cavalares de arrependimento, ilustra, ao mesmo tempo, o automatismo da mente – que continua de “rédeas soltas”, imperatriz do seu agir, desregulada – e a ausência de verdadeira vontade – já que você não queria ter feito o que fez. Quando a Filosofia debate a oposição entre livre-arbítrio e determinismo, sem nunca chegar a conclusões satisfatórias, me parece que deixaram de lado essa análise e suas consequências. Se nossa mente age por si só, se você nunca se questionou o que significa, de fato, vontade, se você nunca desceu às raízes mais profundas do seu agir diário e cotidiano, é muito possível que você seja um sujeito absolutamente condicionado a impulsos que nunca vai reconhecer e identificar. E quando, num dia qualquer, você cometer uma barbaridade, dirão: “mas nunca imaginei que ele fosse capaz de fazer isso”. Dentro de você, circuitos cerebrais estão construídos e estão por construir. Ninguém, nem mesmo você, os observa. Parece-me um tanto perigoso não fazê-lo.

Então se há um caminho para sermos livres, quero dizer: de fato livres, ele exige um mergulho no pré-pensamento. Um olhar atento para esse lugar bem específico onde nossos pensamentos tomam corpo, onde se formam. Quando estamos diante de um pensar já constituído, já secundário, o mal está feito. Somos, nesse instante, seres inteiramente condicionados e determinados.

Livre-arbítrio há sim. Mas nossa! Quão poucos parecem possuí-lo. Pior: quão poucos estão dispostos a descobrir o que seja isso. Concretamente, quero dizer, não no sentido de eu escolher se como uma banana ou uma maça no meu lanche. Esta última “escolha”, como a maioria de nossas pseudoescolhas, estou convicto, não se deu em plena liberdade.

Enfim, não sei se nos entendemos. Não quero convencê-lo de nada, mas tão somente esmiuçar esta vida que vive em mim, procurar captar seu eventual sentido. Escrever é uma dessas ações que, para mim, convencendo ou não quem me lê, está imbrincada com minha vontade, não decorre de automatismo algum. De algum modo, é uma manifestação harmônica de mim mesmo. Então escrevo, ainda que lhe pareça uma “viagem” o que digo, vez ou outra. Posso não ter atingido nada de essencial com isso, mas continuo minha busca. Aliás, falando nisso, você já descobriu qual é a sua? Ou são pensamentos secundários que te direcionam?

domingo, 3 de julho de 2016

Estas noites

Estas noites onde vi de tudo,
Onde a beleza se fez presente
Nas mesas e esquinas
Sozinha ou acompanhada, 
Buscando abrigo,
Mas longínqua.
Tão distante que não era beleza
Tão pungente que era dor.
Ferida incomunicável
Do desejo que não se realiza,
Embora plane no ar, vagando,
Como minha própria solidão.
Estas noites em que, à janela do quarto,
A fumaça do cigarro destrói os últimos resquícios
Da vontade de amar.
Estas noites onde não há respostas
(onde não há perguntas)
São as mais difíceis.
E os olhares furtivos,
Poses de conquista,
Risos gratuitos
Prometem tudo que o real não cumpre.
Os gestos são sonhos vívidos,
Passeio entre aqueles
Que caminham, brancos fantasmas.
Estas noites, se vividas são,
Morrem devagar, em fogo baixo,
Sob o som de palavras não ditas,
Sob o peso do enfado.
Beijos perdidos, 
Corpos não aflorados, 
Sonho irrequieto.
Nestas noites, o dia
Bem que seria -
em surreal lampejo -
Bem-vindo.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Brasil à vista

Nunca se viu tanto lixo jogado no ventilador como nos últimos tempos no Brasil. Lava-jato, delações premiadas, gravações de conversas suspeitas entre homens públicos, abertura de inquéritos, julgamentos de autoridades antes intocáveis, condenações. O meio político se esfacela a olhos vistos, não se sabe se alguém há de escapar ileso dessa verdadeira devassa midiática. E, apesar da revolta contra a prática endêmica da corrupção no país, vem-me um sorriso de esperança.

O Brasil está acordado e vigilante. Nada mais há de “passar batido”. Parece que nos direcionamos para uma realidade semelhante à norte-americana, em que um escândalo, por menor que seja, põe em xeque a candidatura de qualquer político. É claro que um cenário assim tende a gerar excessos e injustiças, porque nem todos os que são citados em operações policiais serão considerados culpados, ao final. Não há como evitar os factoides e a as jogadas políticas para jogar o adversário na lama, mas me parece que é melhor isso do que o sistema anterior, em que, nos bastidores de um sistema confortavelmente corrupto, comia-se caviar sem maiores preocupações.

Em boa medida, essa devassa promissora é fruto da liberdade de imprensa e do desenvolvimento e expansão de outras mídias, sobretudo aquelas provenientes do meio virtual. Reclama-se muitas vezes da parcialidade da mídia oficial. Reclama-se com razão, mas também com certa ingenuidade: é evidente que toda mídia é parcial. Sequer o Poder Judiciário é imparcial, apesar de seu discurso em sentido contrário. Desconfio, aqui com meus botões, de que todo ser humano é parcial e de que o antônimo de parcialidade não é imparcialidade, mas indiferença ou aceitação, atributo de iluminados, que não somos – a maioria.

A boa nova é que vivemos num capitalismo midiático em que a concorrência está presente, ainda que desigual o poder dos produtores de notícia. Quero dizer com isso que se a chamada imprensa oficial não noticia algo, as mídias sociais o fazem, e a primeira está sempre com os olhos voltados para a segunda, atenta à intensidade de suas divulgações. Veja-se o caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro. Houve um “atraso” da mídia televisiva em noticiar o fato: só o fizeram quando o assunto já “bombava” nas redes sociais. Fica claro, portanto, que a sociedade está de olho em tudo o que ocorre ao seu redor e hoje, felizmente, possui meios de se fazer ouvida.

Em termos de avanço político, esperamos que nunca mais se jogue debaixo do tapete investigações de qualquer natureza. Na minha humilde opinião, todo político devia deixar que se fizesse a devassa pública de sua vida. Claro, respeitando-se a intimidade dos assuntos privados. Lembro-me de um episódio em que fora nomeado, há poucos anos atrás, para a chefia da ABIN, um competente delegado da Polícia Federal. Surgiram então gravações de parlamentares e de membros do STF. Foi aquela inflamação: os congressistas se manifestando em seus respectivos plenários, atacando um suposto Estado Policial que violava as garantias inafastáveis (por que não dizer divinas?) da Constituição Federal, etc. Não ouvi ninguém dizer: “pode gravar o que quiserem, não devo nada a ninguém”. E agora vemos por quê.

Se o homem público, então, não quer sofrer a devassa de suas contas, de seu passado político, de suas aventuras empresariais, de suas conexões espúrias, pois bem: que sejam bem-vindas a Lava-Jato e a imprensa livre. Mais uma vez: melhor as acusações baseadas em indícios do que o silêncio angustiante das empreitadas corruptas. Se o estadista não se antecipa e mostra a idoneidade de suas contas e de seu histórico, que os meios de comunicação arrombem as portas e ponham tudo abaixo. Pelo menos a partir de agora, não é só o sistema judiciário, muitas vezes aprisionado em conchaves e preferências políticas, que fará o julgamento do político, mas toda a sociedade.

Creio, nesse sentido, que vivenciamos um momento histórico. Começa a desmoronar a era de ouro da impunidade na política. Agora não se fazem mais concessões a partidos; agora quem sobe ao poder sofre imediatamente uma sabatina social. Veja-se, para exemplificar, o que tem ocorrido com as nomeações do Presidente em exercício, Michel Temer. O brasileiro está cansado e não admite mais a menor mancha, a menor suspeita a pairar sobre seus representantes no poder. Esperemos que isto não seja só um momento, mas que se torne um hábito institucional. E mais: que transcenda o âmbito nacional, mais notório, para se espalhar pelos estados e municípios. Que atinja as esferas mais diminutas do poder público.

Desde Maquiavel se discute se podem coexistir ética e política, ou se a ética política é diferenciada e possui seus mecanismos próprios, dissociados da moral comum. Não se pode esquecer o quanto há de arte na ação política. Deve-se preservar o que há aqui de essencial: a argumentação, a inteligência, a coerência do discurso, a busca pelo bem-estar do povo, entre outras qualidades inerentes à atividade. Mas o que vem ocorrendo no país é uma demonstração inequívoca de que o cidadão brasileiro estipulou a linha que não se deve mais cruzar no campo político. O homem público não deve ser um puro – o que seria isso, aliás? –, mas não pode ser um bandido. A legalidade é o limite. Não admitimos mais a ação que descamba para o crime, para a corrupção.

Se você, caro futuro candidato, ainda não entendeu isso, boa sorte nas próximas eleições. O Brasil à vista distancia-se cada vez mais do seu Brasil.


Imagem: NASA

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Permanência do desejo, finitude da vida


A “urgência masculina” de que você falava, eu a imaginei outra, detalhe para comprovar a teoria das associações mentais. Imaginei, não a urgência de se preservar o que há de verdadeiramente masculino, como no caso do cara que em legítima defesa matou aquele louco, mas a necessidade de se compreender a compulsão para consumir gente, compulsão que nasce da superexposição da beleza feminina, do seu corpo, das armadilhas do seu sexo. Na nossa época, claro. Pensei que o sujeito era, não um louco, mas um doente. Doente de uma doença do tempo pós-moderno, que no seu caso atingiu um grau maior do que o que se encontra na maioria de nós. Como eu.

Esse vazio que a palavra “vazio” não explica. Lugar-comum cuja expressão mais se parece com uma camisa saída da máquina de lavar, surrada, pesada e incoerente. Não é vazio, mas insinuação sentida como “peso”. Também não, não é peso. É corrente energética sutil, veias e nervos percorridos em ascensão, querendo virar choro, não porque seja doloroso, mas porque pelas lágrimas pode deixar o corpo, transformando-se em ausência. De modo que, não chorado, é presença, desejo.

Mas nem sempre se consegue chorar, eis o problema.

Eu sei, você não entende nada do que digo. Talvez a sensação que precede o choro que vem – ou não – seja “esperança”. Mais uma palavra sem tradução. Esperar é não ter, e não ter é “frustração”. Outra. Mais correto seria dizer que o sentir se sabe sem esperança, e que este conhecimento é que provoca a vontade de verter lágrimas. Lembre-se: nem sempre vertidas. Aquela vaga coceira atrás dos olhos, imiscuída ali por um estímulo visual que se repete diariamente. À exaustão.

Fico aqui querendo dissecá-lo, o desejo, enquanto ele me destrói. Bem, não me destrói: me envenena. Porque a sensação, seja qual for sua exata definição, é ruim. O ser (deveria dizer a mente? o cérebro?) voltado para o objeto de desejo, que é objeto não se sabe porquê, uma vez que sua posse não aniquila o desejo, mas o aumenta, torna-o mais poderoso. Duas coisas completamente diferentes o objeto que cremos ser o que se deseja, e o desejo em si. Pronto, entrei na vibe filosófica.

Mas tente me seguir.

A urgência é outra, a dos doentes como eu. A urgência de aniquilar a ideia que nos foi vendida, que nos é vendida, diariamente. Felicidade é o que nos dizem que é, e ela (sua definição, seu conceito, sua representação) nos desce goela abaixo. Felicidade, abstração maior, nome criado a posteriori, contrário à constatação de existência. Um Deus. Ídolo dos mais ambíguos, cujo nome escorrega facilmente das bocas. Felicidade não há, como nada que tem rótulo existe de fato. Mas a urgência é essa ideologia, a de ser feliz.

Estado de suposta completude em seres esburacados de ausência. A grande mentira da plenitude pela posse do outro. A ideia de posse, inclusive. Quando se sabe que tudo se esvai, tudo se destrói, envelhece e morre. Desaparece. Mas amamos fantasmas e impermanência. Embutido na crença da rigidez e da permanência do que se apresenta tão concreto e palpável (a carne, o corpo, o sorriso), está o fato que ninguém ousa admitir, para que a ilusão se sustente: estamos morrendo.

Nunca alcançaremos, nunca teremos em nossas mãos a beleza. Ela não se consome, apesar do que diz a propaganda. Escapará como a água do chuveiro, passando entre os dedos. Nunca possuiremos um corpo ou uma alma. Tocaremo-nos de leve, talvez. E só. Nesse toque pode haver intensidade físico-cerebral suficiente para nos fazer crer na eternidade, já que o gozo pleno é o que mais se confunde com a noção que temos de eternidade (velha confusão entre “prazer” e “felicidade”), mas nunca capturaremos o real.

É duro constatar, mas o real é tão somente a prisão que cada um de nós criou para si. Seu inferno particular, ora povoado de beldades, ora de poder, ora de matéria, ora de conceitos que remetem à eterna carência que somos. Povoado, construído em cima do nada, sobre o mais bruto e cruel silêncio. O silêncio que somos incapazes de escutar – ou que não queremos escutar. Preferimos o tagarelar de vozes que nos direcionam, a seu bel-prazer, de um lado para o outro.

Acreditamos que vivemos, mas somos vividos. Acreditamos poder consumir, mas somos consumidos. De fora para dentro e, depois, de dentro para fora. O exterior nos atropela sem resquício de piedade, rolo compressor monumental, enquanto saímos por aí a dizer, estupidamente, que somos livres.

Ninguém é livre até que se aquiete o desejo.
Até que desejar não nos seja mais possível.




quarta-feira, 6 de abril de 2016

A inquieta incógnita


Ah, a solidão que se agiganta
Nesses gestos,
De desleixo e beleza.
Buraco negro, pulsão de morte
No afago, caótico,
De teus cabelos.
A mania que têm as mulheres
De serem belas em curtos atos.
Ação lenta, concentrada,
Fios trançados,

Dedos que se dobram.
Clamor do inferno,
Promessas do paraíso,
Paradoxo.
Tua cor, perfeita.
E óbvio: indiferente.
Arma, espinho, defesa
Contra olhares indigestos
De tímidos poetas.
Matéria de versos
Carne indiscreta.
Se não me faltasse ar,
Por tua presença,
Gritaria: pára!
Cessa o hipnótico trejeito,
Deixa de existir.
Arranca de mim, com beijos,
E tuas mãos mágicas,
Tão inútil existência.
Só uma coisa não é possível,
Tu, tantas vezes passageira:
Que existamos ambos
Numa sala de espera.
A espera que, cruel,
Se aconchega.
Viro-me um instante,
Rasgo esta página?
Entrego a você, no papel,
Meu coração pulsante?
Nem hesitar,
Nesse mundo veloz,
É possível.
Nem sonhar romances.
Partiste, fantasia solitária.
(minha, sempre)
Mataste, sem saber,
O hipotético amante.



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Nos intervalos



Quando não havia vida, 

Onde estava?

E quando vida brotou,

Puxão de ar, tapa nas nádegas,

Para onde foi lado ausente?

E no choro inicial, onde o sorriso?

E no riso infantil, sossegado,

Não se viram lágrimas.

Rostos embaçados, sono profundo.

Toques, afagos, amor.

E quando houve amor, onde o ódio?

Nos intervalos de quem ama,

Sentimentos confusos,

Passos desorientados.

Se a imagem era pai,

Por onde passara a mãe?

Pai e mãe: alegria.

Quando a razão desponta, trôpega,

Agoniza a criança.

E na recusa da razão,

Desejos, vontades.

Opostos e tensões e dilemas.

Ser aprisionado nas malhas invisíveis

Da mente condicionada.

E se prisioneiro, falecida a criança.

Em velocidade vertiginosa se vai.

Nasce o autômato

Rígido normatizado.

Onde foram tantos outros

Quando chegou o último?

Morreram.

O venerável homem sofre.

Quer também ser destruído,

Passar a nova transformação.

Resfolega doenças,

Esperando belos compassos.

Que vêm. Lentos, mas vêm.

Debate-se em seus escombros o artista,

Lobo frustrado em sua liberdade,

Faminto entre muros

Que o separam das montanhas de neve.

Uiva, mostra os dentes, enjaulado.

Rompe as barreiras,

Lança-se no infinto.

Morre o antigo fruto,

Reluz o criador.

E quando não houver mais criação?

Quando seus olhos não suportarem

As histórias do mundo, em letras transviadas,

Nascerá algo.

Algo sempre nasce.

Algo sempre morre.

Morte e vida presentes:

Entrelaçadas no caótico caminhar cósmico.

Quando as linhas se acabarem,

O que restará?

Silêncio. Meu e seu.


Abismo nosso.