Parece
que existe um pensamento que precede o pensamento. É um
pensamento diferente, que ainda não se tornou uma projeção, uma
imagem consciente. Por exemplo, quando você imagina o jantar
delicioso que vai ter depois do trabalho, quando imagina o encontro
com o ser amado, quando imagina o fim de semana, a ida à praia, a
cerveja gelada, em suma, o que quer que seja, esse pensamento – já,
digamos, secundário – está constituído.
Tanto que virou imagem, ideia bem definida e, até, antecipação do
prazer futuro. Ou dor perante sua – ainda – não realização.
Mas
eu falo de um pensamento anterior a esse. Na verdade, se quisermos
ser exatos, não é outro pensamento, e sim o movimento do pensar
que, ao final, vai desaguar no pensamento constituído. No entanto,
para fins “didáticos” (coloco a expressão entre aspas porque
não estou ensinando nada, mas analisando a mim mesmo), digamos que
seja um pensamento distinto, anterior àquele já constituído, que é
ilustrado por uma imagem ou um “filme” na sua cabeça. É o que
vou chamar de pré-pensamento.
O
pré-pensamento não tem forma. Ele não é imagem. É um pensamento
tão vago e ainda indefinido que se assemelha a uma sensação. Às
vezes, quando estamos prestes a dormir e somos acordados, lembramos
de algum pensamento muito coerente, vivenciado, por assim dizer, às
portas do inconsciente, mas não conseguimos transformá-lo numa
memória bem definida. Você já sentiu isso? É como se estivéssemos
caindo no sono e nossa mente já tivesse começado a produzir um
discurso diferente, com sua coerência peculiar, mas que não passa
pela consciência. Se somos acordados, pensamos: “eu estava
'pensando' em algo tão forte, tão verdadeiro… mas o que era
mesmo?”.
Estou
tentando com esse exemplo captar essa forma de sentir, anterior ao
pensamento claro e definido, algo que se posiciona, poderíamos
dizer, antes do mergulho no inconsciente, numa linha imaginária que
vai do inconsciente ao consciente – e vice-versa.
Um
alerta, antes de continuar. O que chamo de pensamento consciente, ou
pensamento “claro e definido”, embora esteja constituído de
imagens, de sonhos delineados, de expectativas precisas, nem sempre é
tão consciente assim. Posso estar com a imagem da saída, mais
tarde, com os amigos, na minha cabeça, e ainda assim não perceber
que é esta imagem que torna meu dia um tanto torturante. Ela está
ali como construção acabada, mas não percebo claramente que é o
abismo entre o que faço agora – um trabalho chato – e a não
realização dessa imagem, que me faz, simplesmente, estar incomodado
ou angustiado.
Ora,
se até algo que está razoavelmente claro na minha cabeça não
provoca em mim a percepção de que sofro pela frustração do desejo
não realizado, imagine o mal que me pode provocar o pré-pensamento,
que não tem forma alguma e que é, em razão disso, mais sorrateiro.
Vou
dar um exemplo para tornar essa explicação mais simples. Eu desço
à piscina do prédio com o intuito definido de relaxar. Enquanto
estou lá, num ambiente agradável, tomando sol num clima tropical e
verdejante (pois há um jardim), não tenho qualquer imagem definida
na minha cabeça do que vou fazer mais tarde, nenhuma programação
que pudesse ativar uma expectativa qualquer, que por sua vez geraria
o conhecido processo de desejo e de frustração do desejo pela sua
não realização.
Apesar
disso, há um pré-pensamento presente. Ele, se pudesse ser expresso
em palavras, seria algo assim: “e depois?”. Se pudesse ser
expresso! Porque ele não é, ele não se apresenta sob qualquer
forma que seja – imagem, filme, ideia, reflexão. Ele é pensamento
bruto, concreto, quase um “peso” indefinido. "Depois dali, o
quê?" Qual a próxima tarefa? O que tenho que fazer logo
depois, ao longo do dia ou, até, no momento seguinte? Saio da
piscina ou permaneço mais tempo? Pego mais sol, passo protetor ou
volto para casa? Alguém me mandou alguma mensagem no Facebook?
Responderam-me um e-mail? Deveria estar escrevendo um texto? Que
processos me aguardam no trabalho? Vou me estressar?
Eu
sei que estou enunciando vários pensamentos bem delineados, mas
queria que você entendesse, ou talvez até identificasse isso em
você, que esse pensamento é prévio, antecede esses
questionamentos, dá-lhes vida, numa imbricação
metafísica difícil de descrever. É dele, como fonte,
que se impõe, como necessidade, a manifestação de algo
para depois, para logo mais, para um futuro muitíssimo próximo. Na
concretude desse pensamento disforme reside um mecanismo
criador de necessidades, um caos criativo e automatizado. É dele
que brota, irresistível, o imperativo de se agir, nem
que essa ação, a princípio, seja um mero pensamento mais bem
formulado – o pensamento constituído ou secundário.
Se
até agora você não se identificou com nada do que eu disse aqui,
aconselho que pare de ler. Esqueça esse texto. Nós, decididamente,
não estamos compartilhando as mesmas vivências, de modo que o resto
lhe parecerá ainda mais estranho. Digo isso para que não perca seu
tempo.
Do
contrário, continuemos.
Esse pré-pensamento, por sua deformidade ou intangibilidade, pela
incapacidade que temos de dizer qual seria sua forma, poderíamos
apelidar, como fez Freud, de pulsão. A imagem de uma
fonte para mim é perfeita. Há um buraco borbulhante no solo, e dali
brota água. Inexplicavelmente. É uma turbulência, um caos de onde
nasce a vida, mas no nosso caso, a “vida” que dali provém não é
propriamente Vida, mas pensamentos (os secundários).
Esse lugar me parece o exato local onde a pulsão
transforma-se em pensar. A pulsão poderia se transformar em um
bocado de outras coisas, é verdade. Num sujeito como eu, que
privilegiou – infelizmente –, ao longo da vida, uma determinada
atividade mental / cerebral, a pulsão se torna naturalmente
pensamento secundário. E este, associando-se a outros, presentes na
memória como informações, dão início ao processo associativo
cujo fim desconheço, mas que também se apresenta como automático.
Não
creio que seja possível – ou sequer desejável –
tentar refrear o pré-pensamento ou a pulsão, como
você preferir. Isso seria pura repressão. Botar uma
tampa numa panela de pressão e não ficar atento a possíveis
aumentos de temperatura e explosões daí decorrentes. Acho que a
pulsão, em si, não é de morte ou de vida, como se apresenta na
psicanálise. A pulsão é pulsão tout court. A pulsão
é vida que viceja, energia borbulhando, inqualificável, sem
“maldade” ou “bondade” inerentes. Larva vulcânica saindo do
interior da terra, com a capacidade de fertilizar e aquecer - ou
provocar catástrofes. É no cerne do pré-pensamento que ocorre
uma transformação.
No
local exato onde deveria haver vontade é que tudo
se dá. A maioria dos seres humanos parece não possuir vontade.
Não ter desenvolvido a vontade. E eu admito, por não possuí-la num grau
em que creio ser possível possuí-la, não sei muito bem como alcançá-la plenamente. A vontade é, para mim, o maior dos mistérios. Nesse
ponto do pré-pensamento, parece haver seres humanos que encaminham a
pulsão, que a direcionam. “Olhe, você pode até
querer seguir esse percurso cerebral já traçado, que te conduz ao
pensamento secundário do teu atual desemprego, que te leva à
frustração de não ter dinheiro, que te leva à violência contra
os outros justamente por causa dessa frustração, que te leva à
destruição pelas drogas ou pelo álcool, que te leva ao
enegrecimento do teu espírito e à decadência paulatina do teu ser.
Você (pulsão), pode até “querer” isso, mas eu sou a vontade e,
por ser a vontade, te digo: você vai cuidar das plantas, varrer a
casa, estudar, correr, suar; você vai seguir, não o
caminho destrutivo da pulsão, mas o seu
percurso construtivo”.
A
vontade é esse momento em que se escolhe, não o que fazer
no campo da ação, que normalmente já está condicionada a toda
a cadeia de pensamentos, mas que encaminhamento dar ao pré-pensamento
e à pulsão que subjaz a ele. Liberdade e vontade, nesse sentido,
são uma única e mesma coisa para mim. A liberdade só pode estar
situada nessa escolha radical de não deixar que suas ações estejam
pautadas num encadeamento involuntário de pensamentos gerados lá
atrás, na raiz, num campo energético para o qual sua atenção
nunca – nunca mesmo – está voltada. Perceba a quantidade absurda
de condutas suas que provocam o pensamento: “por que eu fiz isso?”.
Perceba
que o “por que eu fiz isso”, impregnado no mais das vezes de
doses cavalares de arrependimento, ilustra, ao mesmo tempo,
o automatismo da mente – que continua de “rédeas
soltas”, imperatriz do seu agir, desregulada – e a ausência
de verdadeira vontade – já que você não queria ter
feito o que fez. Quando a Filosofia debate a oposição entre
livre-arbítrio e determinismo, sem nunca chegar a conclusões
satisfatórias, me parece que deixaram de lado essa análise e suas
consequências. Se nossa mente age por si só, se você nunca se
questionou o que significa, de fato, vontade, se você nunca desceu
às raízes mais profundas do seu agir diário e cotidiano, é muito
possível que você seja um sujeito absolutamente condicionado a
impulsos que nunca vai reconhecer e identificar. E quando, num dia
qualquer, você cometer uma barbaridade, dirão: “mas nunca
imaginei que ele fosse capaz de fazer isso”. Dentro de você,
circuitos cerebrais estão construídos e estão por construir.
Ninguém, nem mesmo você, os observa. Parece-me um tanto perigoso
não fazê-lo.
Então
se há um caminho para sermos livres, quero dizer: de
fato livres, ele exige um mergulho no pré-pensamento. Um
olhar atento para esse lugar bem específico onde nossos pensamentos
tomam corpo, onde se formam. Quando estamos diante de um pensar já
constituído, já secundário, o mal está feito. Somos, nesse
instante, seres inteiramente condicionados e determinados.
Livre-arbítrio
há sim. Mas nossa! Quão poucos parecem possuí-lo. Pior: quão
poucos estão dispostos a descobrir o que seja isso. Concretamente,
quero dizer, não no sentido de eu escolher se como uma banana ou uma
maça no meu lanche. Esta última “escolha”, como a maioria de
nossas pseudoescolhas, estou convicto, não se deu em plena
liberdade.
Enfim,
não sei se nos entendemos. Não quero convencê-lo de nada, mas tão
somente esmiuçar esta vida que vive em mim, procurar captar seu
eventual sentido. Escrever é uma dessas ações que, para mim,
convencendo ou não quem me lê, está imbrincada com minha vontade,
não decorre de automatismo algum. De algum modo, é uma manifestação
harmônica de mim mesmo. Então escrevo, ainda que lhe pareça uma
“viagem” o que digo, vez ou outra. Posso não ter atingido nada
de essencial com isso, mas continuo minha busca. Aliás, falando
nisso, você já descobriu qual é a sua? Ou são pensamentos
secundários que te direcionam?